Urge adequar a legislação sobre as microfinanças para que se tornem num actor chave para o desenvolvimento

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Nos final do seculo XIX e principio de XX, o mundo experimentou as primeiras manifestações das microfinanças ancoradas na Associação de Pão de Raiffeinsen e Caísses Populaires na Alemanha e Canada, respectivamente, mas foi na década de 1970 com a experiência iniciada em Bangladesh pelo professor Muhamad Yunus que se deu o marco formal e popular deste movimento pro-desenvolvimento. Na sequência disso, reconheceu-se o papel das microfinanças na erradiação da probreza. As Nações Unidas reagiram e instituiu-se 2005 como o Ano Internacional do Microcrédito e Muhammad Yunus, fundador do Grameen Bank foi agraciado com o Prémio Nobel da Paz.

Em Moçambique, este movimento de microfinanças teve inicio na década 90 dominado por organizações não governamentais e iniciativas públicas para a reinserção da população efectada pela guerra, estabilização da paz e segurança alimentar. Adiante, viu-se a expansão de inúmeras instituições de microfinanças, tendo várias agências de cooperação apoiado o surgimento de algumas instituições incluindo a constituição da AMOMIF. Mas, nos anos seguintes, assistiu-se a um esmorecimento e muitas IMFs desapareceram e, em vez disso, presenciámos uma forte expansão de bancos comerciais, incluindo programas como 1 distrito 1 banco, que permitiu canalizar avultados recursos públicos em benefício de bancos. Porém, mais recentemente, há sinais de que se pretende relançar a indústria de microfinanças, pois, como afirmou recentemente o Governador do Banco de Moçambique a falta de inclusão financeira é um problema que tem implicações negativas na justiça social.

A Caixa Comunitária de Microfinanças (CCOM), é uma das mais antigas experiências (instituições) de Microfinanças de Moçambique e tem acompanhado a sua evolução ao longo de mais de duas décadas, por isso, o F4SD foi conversar com Enoque Changamo, Director Geral, que é também membro fundador da Associação Moçambicana dos Operadores de MicroFinanças (AMOMIF) para com ele medir o pulsar da indústria microfinanceira e o seu contributo no desenvolvimento sustentável de Moçambique.

Partilha desta descrição sumária sobre a evolução das microfinanças em Moçambique? Se tem uma visão diferente deste resumo, o que poderia dizer-nos para melhorarmos o nosso conhecimento?

A minha visão corresponde a isso que falou. Embora não comecem no período do Yunus, essas iniciativas, que já existiam na Europa e eram chamadas cooperativas, conheceram um salto no Bangladesh e marcou a indústria até hoje. Yunus era professor e, no seu percurso diário, via situações dramáticas de pobreza das senhoras que vendiam na rua em condições precárias. Conversando com elas, soube que iam buscar a mercadoria para vender e, no fim, devolviam o dinheiro, ficando com quase nada. Ele decidiu emprestar-lhes dinheiro, para que comprassem a mercadoria ao invés de revender a de outrem. Como conseguiam devolver o dinheiro, mais pessoas foram apoiadas e assim surgiu o actual conceito de microfinanças. Há também exemplos em África e em Moçambique, onde tínhamos o Banco Popular de Desenvolvimento, cuja finalidade era desenvolver um tipo de negócio de crédito que os bancos tradicionais não o faziam, mas o modelo escolhido não vincou.

Por razões conjunturais ou má gestão?

Temos que admitir que foi uma mistura. Mas, o principal é a legislação. Um banco deve cumprir muitas regras formais, tem que prestar contas ao banco central, e envolve-se também no cumprimento de todas as normas de um banco tradicional, isso implica, em parte, não ser inclusivo para os segmentos de mais baixa renda.

É na falha sistémica que surgem as microfinanças em Moçambique?

Antes do actual modelo, já havia iniciativas como o Xitique, que surgiu muito antes e hoje está modernizado. Estas iniciativas respondem às lacunas que o sistema financeiro tem que não beneficiam as classes pobres. Por exemplo, para fazer um depósito, vão te pedir o documento de identificação, NUIT e para abrir uma conta, outra série de documentos. E temos de reconhecer que no nosso país muita gente não tem documentos e se não os tens é excluido, enquanto que no Xitique não é preciso, basta partilhar o conhecimento mútuo e a confiança, é apenas a fé que impera. Estes modelos inspiraram também o surgimento das microfinancas para fazer pequenas coisas que estão ao alcance desta população pobre.

Olhando para esta realidade, como as microfinancas podem exercer um papel determinante para a inclusão financeira e combate à pobreza?

Falando um pouco da experiência em Moçambique, as microfinanças foram sempre vistas na perspectiva do alívio à pobreza, sobretudo nos anos difíceis da guerra, da fome, da miséria, em que não tínhamos nada. Houve uma retorna massiva da população que esteve nos países vizinhos, em camiões, machibombos, mas quando voltavam não encontravam nada, tudo perdeu-se. É quando entram as ONGs a distribuírem roupa e comida para aliviar a pobreza. Mas, se sabia que as ONGs não iam ficar para sempre, por isso havia a necessidade de se arranjar soluções locais. Coincidentemente, foi na altura em que no mundo se fortificava o movimento das microfinanças e, com as mudanças em curso, o Governo, decide aprovar a criação da CCOM, em 1993.

Como se processou isso?

Com a participação de vários membros do governo em fóruns internacionais, realizando visitas a outros países, aprenderam como as microfinanças mudavam a vida dos pobres, então o governo decide que deve se também criar um projecto igual em Moçambique, para ajudar a população. Fez-se um estudo de viabilidade em 1995 em Maputo, Zambézia e Cabo Delgado e ao abrigo de um acordo com a Agência Francesa de Desenvolvimento, em 1997 inicia-se o projecto, na província de Gaza, apoiando os agricultores nos regadios, aqui também em Maputo, apoiando a União Geral das Cooperativas na cintura verde, foi onde nasceram as primeiras, na zona sul e outras em Cabo Delgado, mais concretamente em Montepuez, Chiure, Balama, Ancuabe e Namuno.

As condições de acesso ao crédito melhoraram?

No nosso caso era tudo desenhado olhando para as necessidades da população, criámos tudo do zero, ensinando o conceito, criando comités de gestão e, depois, através de uma linha de financiamento, fazíamos empréstimos sem muita burocracia. Aliás, até hoje o microfinanciamento é menos burocrático e visa resolver problemas pontuais com celeridade.

Hoje quais são os desafios das microfinancas?

O desafio continua o mesmo e não é só de Moçambique. Por causa do sucesso no apoio ao combate à pobreza, as microfinanças passaram a ser moda. Como AMOMIF (Associação Moçambicana dos Operadores de Microfinanças), continuamos a desempenhar o nosso papel com vista a tornar sustentáveis as actividades de microfinanças, para que possam contribuir de forma eficaz para o alívio à pobreza e, correntemente, para a edificação de uma economia de base, maioritariamente sustentada por pequenos negócios. Isso é feito de várias maneiras, dentre as quais a formação constante dos nossos membros, a introdução de tecnologia e através do lobbie junto de quem de direito, para que se façam as devidas alterações legais para salvar esta indústria.

E como está a saúde das microfinancas em Moçambique?

Tem estado a melhorar com os esforços dos intervenientes, dentre os quais a AMOMIF. Contudo, os desafios continuam grandes e parte deles se prendem com a génese de muitas das nossas Instituições Micro Financeiras (IMFs). Como disse, este movimento começou com o apoio de Organizações Não Governamentais (ONGs), o que criou uma grande corrida para a criação de microfinanceiras, para receberem esses dinheiros do estrangeiro, não havia muito trabalho na capacidade de gestão, capacitação humana, não se apostou muito nisso, por isso, quando depois de 2005 as instituições internacionais mudaram de prioridade e pararam de apoiar, a maior parte das IMFs moçambicanas não tinham conseguido a sustentabilidade operacional. A maior parte delas fechou as portas. E para se reinventar abraçaram o agiotismo, com taxas de juros impossíveis. Portanto, não se criou uma estrutura que olhe para a sustentabilidade e o surgimento da AMOMIF visava criar uma plataforma onde as questões das microfinanças fossem discutidas. Infelizmente não temos um braço financeiro, apesar de algumas parcerias recentes que nos dão algum alento, mas sobrevivemos de quotas. Se olharmos para outros países, vemos que, a nível de alguns governos eles entenderam o valor das microfinancas e criaram instituições que lidam especificamente com isso e com regras próprias. Até hoje Moçambique não tem. Só a AMOMIF está a tentar caminhos de apoio.

Que recomendações aos decisores para que as microfinanceiras se tornem um activo no desenvolvimento social?
O Governo deve olhar e entender o porquê das dificuldades que enfrentamos, E quais são?

Começando pela legislação das microfinancas, vou explicar de outra maneira, das minhas vivências com várias organizações de microfinancas e muitos cursos de finanças, há um desafio de sustentabilidade delas, e quase todo mundo chega à mesma conclusão: uma instituição de microfinancas que não capta depósitos não é sustentável.

As licenças que existem em Moçambique para operadores de microfinancas interditam-nas de captar depósitos, isso as torna totalmente dependentes de fundos externos para poder funcionar. E quando seca a fonte das ONGs, acabam se comprometendo com bancos comercias, pedindo linhas de crédito. Mas o banco comercial está a emprestar a quanto? A taxa de juros comercial é insustentável. Então, isso agrava as taxas de juro dos empréstimos das microfinanceiras e, quanto mais alta forem estas taxas de juros, mais os beneficiários de micronegócios tendem a falhar nos negócios e a não pagar.

Há algum avanço sob o ponto de vista legal, com vista a resolver as vossas preocupações?

Há pouco tempo houve uma revisão da legislação, mas não abrange a todos os operadores de micro finanças. Só as cooperativas e microbancos, por estarem sujeitos à supervisão prudencial, é que estão autorizados a captar depósitos do público. Contudo, o facto de as regras para operar um micro banco serem praticamente as mesmas que regem os bancos comerciais, vão reduzir o papel que estes operadores poderiam exercer num quadro diferente que lhes permitisse algum alívio prudencial.

Há alguma contra-proposta concreta da AMOMIF junto ao regulador?

O Banco de Moçambique teve várias iniciativas que vão de encontro a uma parte das nossas preocupações, mas ele pouco pode fazer. Devemos entender que o banco central não é a instituição apropriada para tal, pois não vai deixar o seu papel de regulador, cujas regras são claras.

Então que soluções apontam?

Pensamos que deveria ser criada uma instituição reguladora das actividades de microfinanciamento ou ainda criar uma unidade dentro do BdM para lidar apenas com as IMFs, com regras diferentes às da banca comercial. De contrário, será difícil ter as microfinanças a exercerem o seu papel na dinamização da economia com a flexibilidade desejada.

Há já algum passo dado nesse sentido?

Fazemos Lobbie, em cada fórum onde participamos passamos a mensagem, mas não é fácil mudar a legislação de um país. Já fomos convidados à Assembleia da República e deixámos lá as nossas ideias, mas o BdM é que decide. Mas, nem tudo está perdido, as ASCAS estão a fazer um bom trabalho e o governo está a ver esta realidade e vê que funcionam como microfinanças não formais. Esses grupos movimentam muito dinheiro e se organizam em volta da produção agrícola e cadeias de produção. Os representantes do governo visitaram e entenderam que este movimento é uma realidade que está em todo país e envolve milhões de pessoas e pode suplantar o número de clientes da banca.

Aliás, esta foi uma das estratégias que usámos para garantir a nossa sustentabilidade como CCOM. Apoiámos o estabelecimento de Organizações de Poupança e Empréstimo (OPE) e ASCAS.

O que se deve esperar da CCOM e da AMOMIF?

O governo deve ouvir as dificuldades das instituições de microfinanças, com algum enfoque nos aspectos ligados à legislação, sob pena de continuarmos a ver microfinanceiras a se transformarem em agiotas. Deve-se criar um fundo nacional de apoio às microfinanceiras que não captam depósitos, não pode ser um banco comercial a fazer empréstimos a uma microfinanceira. Esse fundo nacional deverá ser gerido de modo profissional com o objectivo de fazer crescer a indústria de microfinanças e uma instituição para ter acesso a este financiamento, deve cumprir alguns requisitos, como ter um sistema de informação, ter uma capacidade de gestão demonstrada, deligências demonstradas de que pode gerir, prestar relatórios e ser membro da AMOMIF.

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